Na década de 1970, nos Estados Unidos, Linda Goode-Bryant e Marcy S. Philips elaboraram o conceito de contextura para descrever as produções artísticas que levavam experiências de cunho abstracionista a recosturar os elos entre forma e realidade, considerando a singularidade da pessoa artista na percepção dos fenômenos do mundo — e escapando do academicismo que fundamentava e, de certo modo, despolitizava a Arte Abstrata, até então. A ideia surgiu quando ambas começaram a refletir sobre a atuação de artistas afro-americano/as organizado/as, naquele momento, no chamado Studio Z: coletivo formado pelo desejo de criar um espaço onde ele/as pudessem se expressar livremente, tecendo colaborações entre suas obras e processos de criação como forma de ativismo e de construção de redes de apoio.

“Os contexturalistas trabalham primordialmente a partir de suas percepções pessoais e experiências cumulativas de fenômenos internos e externos”, escreveram Goode-Bryant e Philips (2020, p. 66).
Li sobre a contextura pela primeira vez no catálogo da exposição Topologias, da artista estadunidense Senga Nengudi — uma das participantes do Studio Z —, realizada no ano de 2021, no MASP. Não fui à exposição, que aconteceu durante a pandemia da COVID-19, e só me atentei para o trabalho de Senga há pouco tempo, numa pesquisa sobre fotoperformance e arte têxtil. O conceito me chamou a atenção pela presença da palavra textura, que imediatamente nos conecta ao universo dos fios e dos tecidos, e essa conexão me pareceu ser reforçada pela associação da contextura à obra de Senga.
Na publicação intitulada Contexture, Goode-Bryant e Philips (1978) usam um episódio seminal do Dadaísmo, no início do século XX, como exemplo que nos ajuda a compreender melhor o conceito: quando o artista francês Marcel Duchamp inscreve um mictório — um objeto industrializado, cujo fabrico não passou por suas mãos — numa exposição do circuito artístico, declarando-o como uma obra de arte. O ready-made, como o objeto ficou conhecido, chamava atenção para o contexto institucional (os espaços da arte) como aquilo que atribui valor artístico às obras, que legitima, que define o que pode ou não ser arte, ou como a artista e professora Mayana Redin escreve: “um objeto que reconhecem que perdeu um valor de uso e ganhou valor artístico por ter sido transladado de uma instituição a outra” (2020, p. 43). Essa perda do valor de uso, essa incapacidade de desempenhar a função para a qual ele originalmente foi concebido, quando colocado no espaço da galeria, operaria uma espécie de corrupção, de ruptura com os contextos que escapam à arte, de modo que o objeto possa integrar este campo por inteiro (e devemos lembrar que a cisão entre o contemplativo e o utilitário foi crucial na modelagem do conceito de arte tal como a conhecemos hoje). E é na contramão disso que o conceito de contextura caminha, pois Goode-Bryant e Philips, observando a movimentação dos/as artistas do Studio Z, que também faziam uso de materiais industrializados, retirados de diversos contextos do mundo, percebem que as propriedades e funcionalidades originais dos objetos, por mais que houvesse um constante deslocamento entre espaços, estavam sendo preservadas. E mais: eram vistas como potência no trabalho criativo. Assim, o diálogo entre o que ficava à margem e o que era nuclear à arte definia o repertório conceitual e artístico da contextura.
Da perspectiva técnica do têxtil, a palavra textura, que dá corpo à contextura, possui dupla acepção: a de ser a estrutura (o tecido em si) ou a característica superficial (os elementos visuais e táteis que saltam do corpo do tecido). A textura é a sustentação e aquilo que brota para além do esqueleto estrutural, demonstrando a interdependência de nuances que, geralmente, percebemos como separadas. Em outras palavras: no têxtil, superfície e profundidade se confundem, são valores que expressam a mesma dimensão, pois um tecido é feito de pontos, isto é, de fios entrelaçados entre si, e a textura se trata do relevo formado pelas características das ligações entre esses pontos.
No dicionário, a palavra contextura se refere à ligação entre as partes de um todo, ao enredo, ao modo como essas partes se ligam e geram uma espécie de encadeamento. Essa questão metodológica — o modo de ligar, de trabalhar com os materiais — faz toda diferença no entendimento da contextura, pois articular as propriedades e os contextos, preservando ou não toda informação prévia imantada nas materialidades, partia das escolhas e das gestualidades do/as artistas. Assim, se o mictório enfatizava o contexto estrutural do campo da arte, os contexturalistas se voltavam para o contexto de origem de seus materiais de trabalho como elemento indispensável à experiência plástica/poética/formal.
Elasticidade, resistência, termicidade, opacidade, transparência, cobertura, maciez… todas essas são propriedades dos tecidos ativadas e utilizadas por nós em nossa vida comum, são elas que justificam o fato de usarmos meios têxteis desde tempos muito remotos. E são esses mesmos valores funcionais que interessam à experiência criativa no campo artístico. Por isso a linguagem têxtil me parece ser exemplar da contextura — ela carrega sua plasticidade (que percebo como equivalente à funcionalidade) e historicidade de forma tão entrelaçada que temos dificuldade de romper com os diferentes contextos que a constituem mesmo quando desejamos. Afinal, o que é que nos faz perguntar, diante de uma obra têxtil, qual a diferença entre a arte e o artesanato? São muitas as razões e, dentre elas, está essa inseparabilidade ou porosidade dos campos dos quais ela participa.
É a integridade desses contextos, com suas dissonâncias e seus potenciais, que afirma a importância da contextura como um movimento de ressignificação dos elos entre arte e vida, forma e significado, porque demonstram as forças políticas e poéticas que constituem os fenômenos do mundo — um mundo que segrega, marginaliza e comprime —, não para condicionar ou restringir a experiência artística, mas para que nossos gestos de criação possam transitar livremente entre os desvios que também participam da estruturação dos espaços.
Leituras
GOODE-BRYANT, Linda; PHILIPS, Marcy S. Contextures. Nova Iorque: Just Above Midtwon Inc., 1978.
Este texto faz parte de uma série de publicações que trazem formas de pensar as artes têxteis baseadas, em sua maioria, nos estudos de pesquisadoras do Brasil.
Um convite para quem cria: até dia 15/05, a revista Fio está com chamada aberta para envio de colaborações. Venham tecer essa edição conosco!